27 de junho de 2019

O último circo

"As crianças já não acreditam mais em mágica". Essas palavras ecoavam na cabeça de Dimitri, que seguia pelas ruas desertas em direção à sua casa:
- "Dimitri, me perdoe. Seu números não tem mais trazido público. Você falou tanto sobre essa porra desse tanque de água e, na primeira noite, ela já começa a vazar. É uma merda, mas tenho de te dispensar. Pra tu não sair no preju total, eu pago o carreto pra levar essa coisa embora. Depois me passa teu endereço pelo telefone". 

Dimitri não tinha o telefone. Ficava triste por deixar Helen, sua nova assistente, na mão.
As ruas eram iluminadas na mesma intensidade de suas esperanças. Ele mal conseguia enxergar. 
Passou pela portaria. Abriu a porta de sua casa. Desabou num choro silencioso. 

Os dias passaram com ele assistindo a gravações de suas antigas apresentações. Eram sempre o mesmo: Uma música, daquelas características de circo, comunicava o início do espetáculo. Um homem anunciava: "Reeeessspeitável púúúblicoooo!...". Então ele olhava o público, colocava sua cartola, e iniciava seus truques.

Uma semana se passou com essa rotina, e então recebeu sua primeira ligação. Era Eddie.
- "Cara, me escuta. Tu tem de voltar à vida. Tô aqui no Divina's, bicho. Traz aquela gravação tua aqui que eu vou tentar descolar alguma coisa num show de variedades ou, sei lá... Chega aqui, toma uma cerveja, nós falamos mal do imbecil do seu ex chefe..."

Suspirou. Levantou do sofá. Pegou a cartola que havia deixado ao lado da TV e a jogou no lixo. Se olhou no espelho e quase não se reconhecia. Tomou um banho e saiu.
- "Senhor Dimitri? Sua caixa de correio parece cheia. Se você tiver a bondade de esvazia-la antes de sair".
A caixa realmente estava estufada. Ele deveria ter agradecido a Dona Amelie. Fará isso na próxima vez que a ver.
Enquanto se aproximava, a caixa começa a ranger. Dimitri se assusta com a música do circo que, de agora em diante, começa a tocar de forma distorcida. Pensa ter deixado a porta de seu apartamento aberta. Ele ajeita seus óculos e abre a porta da caixinha. Escuta: "Reeeessspeitável púúúblicoooo!..." De dentro do correio, sai uma pomba voando. Assustado, retorna seus olhos e vê um enxame de pombas saindo da caixa. Uma última entala e começa a se bicar. Com raiva. Com sangue escorrendo de seu corpo. Dimitri sai correndo.

- "Hahahaha. Então a molecada do prédio tá sacaneando contigo, Dimi. Hahaha. Essa foi boa pra caralho, bicho! Toma mais uma. É por minha conta."
Mais algumas cervejas, e Dimitri escuta uma briga vindo do fundo do bar. Ele novamente escuta a música distorcida: "Reeeessspeitável púúúblicoooo!...". Olha para o lado, mas não encontra mais Eddie. Volta seus olhos para a confusão a tempo de desviar da faca arremessada por um dos homens. Sai correndo do bar.

Andando embriagado pelas ruas vazias, vê um animal. Não consegue distinguir ser um leão, um leopardo ou uma loba. Consegue apenas sentir sua alma gelar. Corre com todas as suas forças e começa a ouvir a música. Ele tropeça numa guia e apaga.
...
Acorda em seu apartamento caído no tapete ao lado de sua cama. Sua cabeça dói e ele sente enjoo. Corre para o banheiro a tempo de colocar tudo para fora. Dá descarga. Lava seu rosto, olha no espelho e percebe a cartola em sua cabeça. Ele o retira. Coloca-o em cima da pia. Olha novamente no espelho e lá está novamente a cartola. A música começa novamente: "Reeeessspeitável púúúblicoooo!...". Ele joga furioso sua cartola para longe, e lá está ela em sua cabeça novamente. Pensa estar ficando louco. Sai do banheiro e sente seu coração quase explodir: em sua cama estava Helen com seu corpo serrado ao meio. Trêmulo, ele corre ao telefone.
- "911, qual sua emergência? Alôô? Alô? Alô? Senhor, por favor, pedimos para que não ocupe nossas linhas...".
Dimitri acorda e não reconhece os móveis, o quarto ou sua roupa. Sente dificuldades para se movimentar e para falar. Se sente um pouco mais confortável ao ver um rosto amigo na sala. Era Eddie.
"Caraalho, Dimi. Passei esses três dias te procurando por tudo que é hospital. Você virou pro lado e começou a correr do nada lá do bar. Não se esforça pra falar, bicho. Os caras te deram medicação pesada aqui. Não esquenta, é pro teu bem. Disseram que tu passou por um 'surto psicótico'. Sei lá que porra é essa... Olha só: te arrumei um trampo, hein? Tu sai daqui e já começa direto a trabalhar adivinha onde? Nem em porra de variedade: Tu ta empregado no último circo da cidade, porra!! Aaahn? O dono pediu só pra vc passar lá e mostrar alguns dos seus truques e tá tudo fechado. Trouxe de volta tua gravação, Dimi. Vou colocar e deixar tocando pra te distrair".
O coração de Dimitri começa a acelerar. Ele tenta abrir a boca e balbuciar algo, mas nada sai. Suas mãos imóveis suam. Eddie coloca a gravação no aparelho, Dimitri fecha os olhos e... normal. A música toca de forma normal.  "Reeeessspeitável púúúblicoooo!...". A mesma forma animada de antes. Dimitri relaxa.
- "Bom, Dimi, tô indo. Aah, duas coisas: teu ex chefe consertou e tá querendo saber quando ele pode devolver aquele teu tanque pro truque da água; e eu peguei tua chave pra dar uma passadinha na tua casa. A Dona Amelie reclamou de um cheiro de podre vindo do teu quarto tem uns três dias.", Eddie fecha a porta. 
gravação engasga por três segundos e volta a tocar de forma distorcida. "Reeeessspeitável púúúblicoooo!..."
Dimitri entra em choque. Ele olha pra cima e vê na parede não um, mas a cabeça dos três animais, o observando. Da boca de cada um começa a jorrar água, que aos poucos vai enchendo a sala. Ele tenta gritar para Eddie, mas não consegue. A gravação anuncia:
"E com vocêês, o último truque da noite". O quarto alaga. Dimitri chora. Suas lágrimas se confundem com a água. Ele dá seu último suspiro e se entrega à água.
A enfermeira entra, solta um grito, derruba sua prancheta e chama a segurança. Dimitri, balança no teto, preso ao lustre pelo lençol amarrado em seu pescoço. Seu corpo, encharcado, goteja água em sua cama abaixo, seca.






Nenhum comentário:

Postar um comentário